Biocombustíveis: Uma proposta para a paz

Editoria: Vininha F. Carvalho 07/04/2005

Samuel Huntington, defensor da idéia de que estamos vivenciando um “conflito de gerações” (os interesses de um mundo desenvolvido e mais velho são contrapostos aos de um mundo jovem em desenvolvimento e cada vez mais frustrado), escreveu que “os choques de civilizações são uma ameaça à paz mundial”, enquanto que “uma ordem internacional baseada em civilizações é a mais firme salvaguarda contra uma guerra mundial”.

A idéia de um conflito de gerações se funda em dados demográficos: metade das pessoas tem hoje menos de 24 anos. No mundo em desenvolvimento, há mais pessoas com menos de 24 anos do que a população inteira do planeta cinquenta anos atrás. Um bilhão desses jovens (60% deles estão na Ásia e 15% na África) precisará de emprego na próxima década.

Para eles, as opções são simples: dignidade ou desespero, trabalho ou inanição. É o emprego que dá significado e dignidade à vida ou pelo menos fornece o básico para a sobrevivência.

Por isso, a questão central que move a vida política é saber se os governos dos países em desenvolvimento serão capazes de garantir estabilidade doméstica, promovendo crescimento suficiente para empregar centenas de milhões de desempregados e subempregados, na mesma medida em que conseguem estabelecer essa “ordem” citada por Huntington. A criação de empregos no mundo emergente pode estar correlacionada com a segurança no mundo desenvolvido.

Em primeiro lugar, essa concepção de “conflito de gerações” aponta para a perspectiva de crescentes futuros problemas. No entanto, se consideramos que hoje já existem 180 milhões de pessoas desempregadas e 550 milhões vivem com menos de US$1 por dia, vemos que os problemas não são para o futuro, já são parte do cotidiano da vida no planeta.

Além disso, a tese do “conflito de gerações” não consegue incorporar outras tensões de tamanha gravidade como as decorrentes da dinâmica do processo de globalização, que internaliza problemas mundiais na vida dos países; a situação de pobreza e contaminação por AIDS que devastam o continente africano; o crescimento assustador (e o conseqüente poder) do dinheiro ilegal advindo do tráfico de drogas e armas, e suas desagregadoras conseqüências sociais e políticas; a exponencial degradação ambiental associada à escassez de água, ausência de saneamento e aumento do efeito estufa. Todas essas tensões dificultam a cooperação e acabam solapando a solidariedade e a paz mundial.

Esse é exatamente o ponto: como promover e incrementar a solidariedade e a paz mundial?

A primeira proposta nasce do pressuposto que o norte tem capital e tecnologia, e precisa de retornos para pagar os benefícios dos idosos. O sul tem abundantes recursos humanos e naturais, mas precisa de capital e tecnologia. Em resumo, podem-se combinar estas possibilidades com as respectivas necessidades: aquilo que parece dividir é o que pode unir. No entanto, essa aparente combinação óbvia não tem funcionado.

Ao contrário: são destinados às nações desenvolvidas, que abriga apenas 20% da força de trabalho do mundo, 60 vezes mais investimentos estrangeiros diretos que os dirigidos às nações em desenvolvimento. Afinal, prevalecem invariavelmente as análises das agências de “avaliação de risco”.

A segunda proposta refere-se à necessidade de novas regras nas negociações comerciais internacionais. Na melhor tradição de Montesquieu, "o comércio é o caminho para a paz entre os povos", e o comércio justo ("fair trade") é o caminho mais rápido para alcançar resultados estáveis e duradouros.

Essas novas regras implicariam na substituição do duro, árido e mesquinho jogo das concessões recíprocas por uma abertura solidária das fronteiras dos países ricos para receber, principalmente, produtos agrícolas e agroindustriais dos países em desenvolvimento. Implicariam mudar a dura realidade de hoje: enquanto os países ricos pagam para seus produtores rurais não produzirem, os países em desenvolvimento, ao contrário, precisam produzir para poder pagar dívidas e importações. E não conseguem, pois são tamanhas as barreiras alfandegárias, tributárias, fitossanitárias e outras que restringem ou impedem suas exportações para países ricos.

Essa segunda proposta também não tem funcionado, já que os governos dos países desenvolvidos têm dificuldades para fazer concessões, pois enfrentam os “lobbies” dos seus produtores organizados. Sem chegar ao exagero de dizer que nesses países os setores econômicos “privatizam” o Estado, pode-se afirmar que os produtores têm voz e presença nas campanhas eleitorais (inclusive as bancando pesadamente) e, posteriormente, no processo de tomada de decisão, congregando toda a força e pressão política que consigam reunir, para que os interesses de seu setor, categoria, classe ou corporação prevaleçam.

Por tudo isso, fica difícil acreditar que países ricos (União Européia, EE. UU. e outros) venham a abrir mão de parte de suas exigências de reciprocidade, amenizando a defesa dos interesses dos seus setores econômicos internos, para em contrapartida, poder ajudar os países do terceiro mundo a se desenvolver.

Resta uma terceira proposta: países em desenvolvimento conseguirem exportar para o mundo desenvolvido produtos que não estejam sendo produzidos na quantidade demandada e dos quais necessite prioritariamente.

É o caso do petróleo. Suas reservas estão entre 1,050 e 1,25 trilhões de barris e o consumo mundial é de 30 bilhões de barris por ano. Um cálculo simplista mostra que as reservas naturais no planeta Terra só dão para menos de 40 anos.

Na verdade, isto não significa que o petróleo vá abruptamente acabar, mas o fato é que na medida em que vai tornando-se mais escasso, o preço vai subindo a ponto de tornar o uso economicamente inviável ou possibilitar energias alternativas, hoje, antieconômicas.

Por isso, estima-se que o petróleo deverá ir sendo destinado a fins mais nobres, como é o caso da petroquímica, deixando que a energia que dá mobilidade, que move veículos, passe a ser produzida a partir da biomassa.

Daí é que surge a oportunidade: a produção e comércio internacional, ainda incipiente, dos biocombustiveis. Além disso, cresce a consciência de que devemos enfrentar os problemas de aquecimento global advindos do “efeito estufa”, restringindo as emissões de CO2, por meio da substituição de “energias sujas” por limpas (renováveis).

Para se ter uma idéia da dimensão do mercado, a produção mundial necessária de etanol, misturado em 10% à gasolina, para substituir completamente o aditivo MTBE, seria de 2 bilhões de barris por ano. O Brasil produz 90 milhões de barris de etanol por ano e pode crescer a ponto de gerar um excedente exportável 200 milhões de barris. A mesma análise pode ser feita no caso do biodiesel.

De acordo com a Declaração de Doha, documento assinado por membros da Organização Mundial de Comércio (OMC), em novembro de 2001, bens e serviços ambientais devem ser liberalizados antes dos demais, como forma de contribuir para o desenvolvimento sustentável.

Ambos os processos produtivos de etanol e biodiesel têm tecnologia conhecida. Os países em desenvolvimento, situados em regiões tropicais ou subtropicais, têm clima quente, alto índice de fotoperiodismo (chegando a 16 horas de sol/dia), água suficiente e abundante mão de obra, ou seja, reúnem todas as condições para se tornar fornecedores de energia limpa (advinda da biomassa) para o mundo todo.

Os biocombustíveis apresentam seis vantagens em relação aos combustíveis tradicionais: a primeira é social, criar empregos; a segunda é macroeconômica, cada barril de biodiesel corresponde a um barril de petróleo a menos que precisa ser importado; a terceira é ambiental, pois os biocombustíveis estão na esteira correta do Protocolo de Kioto, porque ajuda a reduzir a emissão de CO2 e não contribui para o efeito estufa; a quarta vantagem diz respeito à produção de bioeletricidade, pois os resíduos da produção do biodiesel ou do etanol como já ocorre com o bagaço da cana, podem ser queimados para gerar energia elétrica. O quinto ponto se refere à saúde pública.

Pequeno número de pessoas se lembram de que, há poucos anos, usávamos (e alguns países ainda usam) como aditivo à gasolina o chumbo tetraetila, altamente cancerígeno. O sexto benefício é estratégico e geopolítico: diminuir a dependência do petróleo.

Está na hora de o mundo tornar-se mais solidário. Se quisermos nos auto-rotular de povo civilizado, é imperioso mudar esse quadro de uma vez por todas. A própria Organização das Nações Unidas para a Fome e a Agricultura (Food and Agriculture Organization of the United Nations – FAO) recomenda o uso de estratégias que ataquem as causas e as conseqüências da pobreza e da fome.

Se há como atacar, mesmo que esse seja somente um primeiro passo, as causas da decadência mundial, por que não começamos?

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Autoria:Antonio Carlos Mendes Thame é deputado federal pelo PSDB-SP e está em seu quarto mandato. É engenheiro agrônomo pela USP e Mestre em Economia Rural. Foi prefeito da cidade de Piracicaba de 1993 a 1996; secretário de Recursos Hídricos, Saneamento e Obras do Estado do Estado de São Paulo nos governos de Mário Covas e Geraldo Alckmin e o primeiro presidente do Comitê de Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí.

Fonte: AG Comunicação Ambiental