Emoção e Aventura a mais de 5 mil metros de altitude

Editoria: Vininha F. Carvalho 14/12/2012

À medida que nos aproximávamos de carro, pela estrada, os primeiros raios da manhã delineavam gradativamente a silhueta do grande vulcão. Havia nevado na região na noite anterior, e a montanha, à distância, parecia um elefante branco deitado, imóvel, imponente.

O Lascar é um dos vários vulcões em atividade na América do Sul, localizado a 5.592 metros de altitude e uma das atrações da região chilena do Atacama - não só para amantes de caminhadas, mas também para quem deseja realizar a fantasia de conhecer, ao vivo e de perto, a cratera fumegante de um vulcão. Em breve, iríamos iniciar nossa empreitada rumo ao cume. Eu, outro turista e o guia.

O deserto do Atacama é vasto, com 363 mil metros quadrados, localizado no norte do Chile, próximo ao Peru, e delimitado pelas águas do Pacifico a oeste e pela Cordilheira dos Andes a leste. Como é alto, 2300 metros acima do nível do mar, é o mais árido do mundo, já que as águas evaporadas do oceano precipitam-se antes de alcançarem o platô e a Cordilheira impede que nuvens cheguem pelo lado oposto.

Daí que chuva é evento raro e considerado bem-vindo pelos habitantes. Mas o leitor atento perguntará: pode nevar no lugar mais seco do planeta? Não só pode, como neva, sim, dependendo do local e de várias conjunções meteorológicas, claro. Tamanha aridez e variação climática, combinadas à história geológica proporcionam uma magnitude de paisagens e formações muito interessantes, como os salares - outrora grandes lagoas salgadas -, além de vulcões, cordilheiras, vales, gêiseres.

A porta de entrada da região é a simpática San Pedro de Atacama. Embora esta cidadezinha esteja atualmente repleta de pousadas e restaurantes, surgidos a partir da década de 90 com a eclosão do turismo, ainda guarda a atmosfera de pueblo, com ruas de terra batida, praticamente sem calçadas e parcamente iluminadas, casas de adobe, cães perambulando livremente pelas ruas, e poeira, muita poeira.

O vilarejo é bastante antigo. Data da época em que habitantes nômades passaram a ocupar o norte inóspito do Chile, há 11 mil anos, vivendo da agricultura e da criação de lhamas e alpacas para aproveitamento da carne e da pele. Comunicavam-se através de língua própria, o kunza, e denominavam-se likan antai (habitantes do território).

Quando os espanhóis ali chegaram, no século 16, em busca de ouro, nomearam-nos atacameños. No século 18 foi erigida pelos jesuítas a Igreja de San Pedro, em homenagem ao apóstolo, e o lugarejo passou a chamar-se San Pedro de Atacama.

Vale mencionar que, embora os colonizadores, cujas expedições principais foram conduzidas por Diego de Almagro e Pedro de Valdivia, tivessem sido recebidos pacificamente pelos likan antai, a recíproca nem sempre foi verdadeira, de forma que - após alguns conflitos armados e rolagem de algumas cabeças -, o povo foi subjugado às vontades da coroa espanhola.

Após um agradável café da manhã à beira de um lago ao pé do vulcão, observando belos pássaros, e com o sol já alto e a paisagem desértica deslumbrante à nossa frente, lá fomos nós vulcão acima.

Às vésperas do embarque, em São Paulo, eu havia sido convocado para uma entrevista na agência de viagem porque os responsáveis queriam certificar-se de que eu sabia o que me aguardava, além de colher informações sobre minha condição física.

Passei no teste, fui considerado apto para a escalada. (Pessoas obesas, sedentárias e portadoras de problemas respiratórios ou cardíacos não seriam aprovados nessa entrevista e entenderão o porquê).

A encosta não era tão íngreme e o solo vulcânico, semelhante a asfalto, não apresentava dificuldades; a neve era rala, o frio, suportável, e a conversa rolava solta.

Tudo se encaminhava para um passeio tranqüilo. No entanto, o guia nos disse que seria melhor iniciarmos a subida bem devagar e em ziguezague, como fazem os cães para economizar energia. Não entendi muito bem porque estava acostumado a corridas de longa distância e caminhadas rápidas, mas cumpri a orientação. E não demorei a entender o porquê da orientação. Uns dez minutos após o inicio comecei a sentir, na pele, ou melhor, no corpo todo, os sintomas daquilo que sempre li em livros e revistas com misto de temor e curiosidade: o ar rarefeito, hipóxia, falta de oxigênio.

A ofegância vinha num crescendo rápido, exponencial. Ouvia facilmente o ruído da minha respiração, cada vez mais intensa e frequente. Fui ficando para trás, o último da nossa pequena fila. A conversa foi naturalmente substituída pelo silêncio e as paradinhas para puxar o ar foram ficando cada vez mais frequentes. Lá pelas tantas, ufa! O guia sugeriu um pitstop estratégico, o que foi prontamente aceito por todos.

Após a tradicional sessão de fotos, ingestão de barras de cereais e água, nos preparamos para o reinício, sem antes dar uma olhadinha para o céu. Percebemos que estávamos não só mais próximos dele, mas também de nuvens ameaçadoras que começavam a se agrupar ao nosso redor.

Apesar da pausa, a retomada não foi nada fácil. As pernas pareciam pesadas, os passos cada vez mais lentos e curtos, a boca permanecia constantemente aberta e a sensação de frio era cada vez mais intensa, pela altura. A cada cinco ou seis passos, que pareciam durar uma eternidade, eu parava, me inclinava por sobre o bastão de apoio e "puxava" o ar.

Logo, as nuvens iniciaram o cumprimento de sua ameaça: chuva, ventania, nevasca. E muito, muito frio. Em um determinado momento, o guia, animado, nos apontou a cratera logo adiante. De fato, apesar da chuva e do vento, já podíamos vê-la, estava bem próxima, uns 20 metros talvez. Tão perto, porém tão longe. Os cinco ou seis passos já estavam em um, no máximo dois, seguidos de paradas mais prolongadas, e o ar, mais difícil.

A dez metros do final, parei exausto e com muito frio. E agora? Desistir, tão perto? Não, seria muito frustrante. Num esforço literalmente sobrenatural, reiniciei. Passo a passo, em câmera lenta, inspirando avidamente aquele oxigênio raro e precioso, após um tempo interminável, venci os mil centímetros mais longos e difíceis da minha vida e alcancei a borda da cratera, pouco depois dos meus companheiros.

Naquele momento, eu não fazia ideia que a cratera tinha 750 metros de diâmetro e 300 de profundidade. Em meio ao vento que soprava forte, a temperatura gélida, ainda tentando recuperar o fôlego, inclinei-me com cuidado e olhei para dentro daquele buraco. E foi então que percebi sua enormidade. Das profundezas saíam tufos de fumaça, a chamada fumarola. O cheiro de enxofre era denso. E, o mais impressionante: a cada 20 ou 30 segundos ouvia-se um barulho agudo, intenso, vindo de lá do fundo, um estalido, seguido de uma ‘cuspida’ de fumaça.

Para tirar algumas poucas fotos, precisei me debruçar um pouco mais por sobre a borda e o guia achou por bem me segurar pelo casaco para evitar que eu fosse engolido pelo vulcão, no caso de um eventual desequilíbrio.

Já mais descansado, sentei numa rocha enquanto me vinha à mente uma frase que escutara há muito tempo: força da natureza. Durante três horas, o tempo que levou para alcançarmos o cume, senti essa força em toda sua plenitude.

Bem, não perderei tempo em descrever o retorno. Com o auxilio da gravidade e do reencontro do oxigênio amigo e do sol, a volta foi bem mais fácil, apesar de alguns escorregões e tombos na neve fofa – mas isso era absolutamente irrelevante frente à satisfação da superação e da realização de um desejo.

Dias depois, para compensar minha aventura invernal, num dia ensolarado fui conhecer uma lagoinha singular: a Lagoa Cejar, a 20 quilômetros de San Pedro. Um mini Mar Morto. Como mencionei acima, em épocas remotas grandes lagoas salgadas secaram, deixando em seu lugar os salares.

A Cejar permanece com as mesmas características: uma lagoa com alta concentração de sal, de tal forma que não há perigo de afogar-se. Qualquer ser humano flutua naturalmente. É imperativo, porém, aproximar-se e sair dela com os pés calçados, uma vez que os cristais de sal ao redor são verdadeiros alfinetes, afiadíssimos, capazes de machucar até mesmo faquires.

Ao sair da água, é preciso lavar o corpo imediatamente com água doce para evitar lesões de pele. Mas não há o que temer: os habitantes locais fornecem um pouco desta água mediante, é claro, uma generosa e obrigatória propina.

Finalmente, permito-me relatar um fato curioso, embora não tanto turístico. Num final de tarde, ao final de um passeio, senti um ardor intenso no meu olho direito. Ao chegar à pousada vi, no espelho, que o olho estava inchado e bastante irritado.

Procurei a agência de viagens local e um guia gentilmente me conduziu ao posto médico. A funcionária que nos atendeu pediu para aguardarmos. O guia, então, me contou que não havia médico no posto e que quem me atenderia seria o chaveiro do vilarejo, já que ele tinha "noções básicas de medicina".

Antes que eu pudesse reagir, o chaveiro, ou melhor, o "médico" chegou, ouviu minha queixa e pediu que eu deitasse na maca. Examinou meu olho e disse que era uma conjuntivite decorrente do clima seco e, possivelmente, de poeira. Imediatamente dirigiu-se a um armário para pegar algo. Pensei comigo: pronto, o "médico" que não é médico começará a cutucar meu olho à procura de algum corpo estranho ou coisa parecida e, adeus olho! Ledo engano.

Apanhou um colírio que gentilmente me forneceu, com instruções de pingá-lo a cada duas horas. Obedeci às ordens e, no dia seguinte, já estava normal. Sinceramente, me arrependi de ter pensado mal do ‘médico’, que foi muito seguro e consciencioso - talvez mais do que muitos profissionais realmente médicos.



Fonte: Luciano Harary - médico cardiologista efetivo do Corpo Clínico do Hospital Samaritano de São Paulo desde 1992.