Atrasos em voos internacionais

Editoria: Vininha F. Carvalho 12/07/2010

Numa viagem turística do Brasil para um passeio pela Europa, certo passageiro tinha bilhetes confirmados por companhia aérea estrangeira, com itinerários procedentes de Paris para Veneza, e de lá, voltando a Paris para o retorno final ao Brasil.

Estando em Paris, foi avisado pela agência de viagens de que o voo, marcado para as 10h00, havia sido adiado para as 18h30, em virtude de uma greve dos controladores em Veneza, o que foi realizado, alguns dias depois, novo transtorno: ao se apresentar para o check-in para o voo programado para Paris foi o viajante informado de que, em razão de um atraso involuntário, esse voo que deveria partir às 20h40, fora cancelado e que seria impossível para o passageiro retornar a tempo para fazer a última conexão para São Paulo.

A alternativa proposta e aceita foi a de que ele teria de aguardar o próximo voo, no dia seguinte, às 05h00, embarcando para Amsterdam, na Holanda onde faria a conexão para São Paulo, num voo de outra companhia aérea, sua parceira, daí então, só restou ao passageiro pernoitar confinado nas dependências do aeroporto, sem o mínimo de conforto, em pequenos bancos, não lhe tendo sido proporcionada nenhuma hospedagem ou alimentação.

Em ação judicial, proposta pelo desafortunado turista no Juizado Especial Cível, com base em disposições do Código Brasileiro de Aeronáutica e no Código de Defesa do Consumidor, pedindo indenização por danos morais, em razão dos infortúnios pessoais suportados por força dos dois atrasos, o primeiro, de quase 6 horas, sendo que o segundo, de quase 10 horas, lhe causou a perda da conexão internacional final.

A companhia aérea em sua defesa logrou comprovar que o primeiro atraso se dera pela greve geral dos controladores de voo em Veneza, não podendo ser responsabilizada, e quanto ao segundo atraso, este fora consequência de problemas mecânicos da aeronave, tendo o juiz acatado às ponderações quanto ao primeiro atraso, mas não aceitando a segunda alegação quanto ao atraso final, resultando em acordo financeiro satisfatório para ambas as partes.

No caso, a companhia aérea logrou comprovar, documentadamente, que o primeiro dos atrasos se dera em função de culpa exclusiva de terceiro, ou seja, movimento grevista de controladores de vôo do aeroporto de destino, situação essa que a jurisprudência tem denominado “fortuito externo” e, portanto, excludente de responsabilidade, ao passo que, no segundo atraso, ou seja, problemas técnicos na aeronave que surjam durante o exercício da atividade econômica, mesmo aqueles que se manifestem somente quando os equipamentos da aeronave são postos em funcionamento inicial, consistem em “fortuito interno”, os quais não excluem a relação de causa e efeito, e portanto, impõem o dever de indenizar.

O Direito pátrio consagra o princípio da exoneração de responsabilidade do devedor pela impossibilidade de cumprir a obrigação sem culpa sua, no entanto, o tema não é pacífico. Há os que entendem que o caso fortuito se funda na imprevisibilidade, enquanto que a força maior se baseia mais na irresistibilidade. Outros, no entanto, sustentam que a força maior exprime a ideia de um evento da natureza (o raio, o ciclone) enquanto que o caso fortuito indica um fato do homem, como por exemplo, a guerra, a greve ou o motim.

Teoricamente, é de admitir-se a existência de diferenças, entretanto, do ponto de vista prático, a distinção não apresenta qualquer utilidade e daí porque as duas expressões a rigor, são tomadas como sinônimas, pois o próprio Código Civil assim as considera, ao referir-se ao caso fortuito e à força maior no artigo 393: O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.” Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não eram possível, evitar ou impedir. “- A doutrina faz apenas uma distinção para o caso fortuito, diferenciando entre o interno e o externo, aplicável, especialmente, nas relações de consumo.

O Código Civil é expresso ao determinar que o transportador de pessoas responde pelos danos a elas causados, “salvo motivo de força maior” (art. 734), estando sujeito aos horários e itinerários previstos, “sob pena de responder por perdas e danos, salvo motivo de força maior”.(art. 737). Mas, nesse caso, diz o art. 741, Interrompendo-se a viagem por qualquer motivo alheio à vontade do transportador, ainda que em conseqüência de evento imprevisível, fica ele obrigado a concluir o transporte contratado em outro veículo da mesma categoria, ou, com a anuência do passageiro, por modalidade diferente, à sua custa, correndo também por sua conta as despesas de estada e alimentação do usuário, durante a espera de novo transporte.”

Por sua vez a Lei nº 7.565 de 19 de dezembro de 1986, (Código Brasileiro de Aeronáutica) assim dispõe no art. 230: Em caso de atraso de partida por mais de quatro horas o transportador providenciará o embarque do passageiro, em vôo que ofereça serviço equivalente para o mesmo destino, se houver, ou restituirá, de imediato, se o passageiro o preferir, o valor do bilhete de passagem; e no art. 231: Quando o transporte sofrer interrupção ou atraso em aeroporto de escala por período superior a quatro horas, qualquer que seja o motivo, o passageiro poderá optar pelo endosso do bilhete de passagem ou pela imediata devolução do preço”.

O caso fortuito ou a força maior não são expressamente mencionados pelo Código de Defesa do Consumidor como excludentes de responsabilidade, possibilitando três interpretações na doutrina, segundo Cavalieri (1997, p. 375-376 apud Cavalcanti, 2002, p. 201): a) Ficam afastados como excludentes de responsabilidade (aplicando-se, neste caso, a responsabilidade objetiva com risco integral, atenuada, ditada pelo Codigo Brasileiro de Aeronáutica e pela Convenção de Montreal, de 1999, em vigor no Brasil desde julho de 2006 e ratificada pelo Decreto nº 5910/2006); b) Permanecem admitidos como excludentes da responsabilidade do fornecedor, por ser a regra tradicional em nosso direito; c) Acatando-se a distinção entre fortuito interno e fortuito externo *, admite-se apenas o segundo como excludente. ( CAVALCANTI, André Uchôa. “Responsabilidade civil do transportador aéreo: tratados internacionais, leis especiais e código de proteção e defesa do consumidor”. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.)
De acordo com os registros jurisprudenciais, a última alternativa de interpretação, que admite apenas o fortuito externo como excludente de responsabilidade, tem prevalecido sobre as demais.

No tocante às hipóteses de fato exclusivo de terceiro ou da vítima, como excludentes de responsabilidade, o Código de Defesa do Consumidor não confronta as leis especiais, visto que em seu art. 14, § 3º, II, assim disciplina: “O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: (...) II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro”. Não resta dúvida, entretanto, que em seu art. 7º, o legislador desejou cobrir todos os campos onde houvesse uma regra mais benéfica para o consumidor, permitindo sua aplicação, em tais casos, em detrimento dos demais dispositivos do código protetivo, ao dispor que: “Os direitos previstos neste Código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e eqüidade.”

Na lição do Desembargador Cavalieri Filho, “O fortuito interno, assim entendido o fato imprevisível e, por isso, inevitável ocorrido no momento da fabricação do produto ou da realização do serviço, não exclui a responsabilidade do fornecedor porque faz parte da sua atividade, liga-se aos riscos do empreendimento, submetendo-se à noção geral de defeito de concepção do produto ou de formulação do serviço”. (Programa de Responsabilidade Civil, 7ª.Ed.,págs.474).

No Superior Tribunal de Justiça prevalece a orientação da Segunda Seção, na linha de que “a ocorrência de problema técnico é fato previsível, não caracterizando hipótese de caso fortuito ou de força maior”, de modo que “cabe indenização a titulo de dano moral pelo atraso de vôo e extravio de bagagem. O dano decorre da demora, desconforto, aflição e dos transtornos suportados pelo passageiro, não se exigindo a prova de tais fatores” ( REsp 612817, D.J. 8/10/2007, pág.287).

Se com relação ao chamado “fortuito interno”, como hipótese não excludente de responsabilidade, há uma certa uniformidade de entendimento, já com relação ao fortuito externo, ou força maior, encontram-se decisões judiciais no sentido de que, mesmo em se tratando de atraso de vôo ocasionado por operação padrão dos controladores, por rompimento de um cabo de fibra ótica do Cindacta II e em razão de fortes chuvas em São Paulo, persiste a obrigação de indenizar, segundo decisão do 7º Juizado Especial Cível de Brasília, para quem “o caso fortuito, que exclui a responsabilidade de indenizar, é aquele completamente estranho à atividade desenvolvida pela empresa, o que não ocorreu nesse caso”; quanto às chuvas, não ficou comprovado que esse evento tivesse contribuído, de forma exclusiva e decisiva, para um atraso de quase 10 horas.

No que tange a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor ao transporte aéreo, muitas são as discussões, visto que tal Código apresenta alguns dispositivos conflitantes com as leis especiais que disciplinam a matéria.

No entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de acordo com as decisões observadas, embora o Código do Consumidor não revogue a legislação especial, representada pelo Código Brasileiro de Aeronáutica e pelos Tratados Internacionais em vigor, o mesmo prevalece sobre tais leis, em caso de conflito, podendo essas apenas coexistir naquilo que com o Código não for incompatível, como se pode notar no julgado abaixo, assim ementado:

"RESPONSABILIDADE CIVIL. TRANSPORTE AÉREO. EXTRAVIO DE BAGAGEM. INDENIZAÇÃO TARIFADA. CONVENÇÃO DE VARSÓVIA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.

Em caso de pretensão à reparação de danos, o lapso decadencial é de cinco anos (art. 27 da Lei nº 8.078, de 11.09.90).

Tratando-se de relação de consumo, prevalecem as disposições do Código de Defesa do Consumidor em relação à Convenção de Varsóvia. Derrogação dos preceitos desta que estabelecem a limitação da responsabilidade das empresas de transporte aéreo. Recurso especial não conhecido" (Data do julgamento: 28/11/2000; Recurso Especial 258132; STJ; Relator: Min. Barros Monteiro)

A legislação protetiva é Lei Especial diante uma relação de consumo. Não parece razoável afirmar que o Código do Consumidor possui caráter de lei geral diante de Tratado Internacional, visto que o mesmo é especial em relação ao sujeito tutelado, ou seja, o consumidor vulnerável.

Como se pode observar, ambos os entendimentos dos tribunais acerca da aplicabilidade das leis internas e internacionais, estão amparados por mandamentos previstos na Constituição Federal Brasileira. O Supremo Tribunal Federal, ao defender a aplicação da Convenção de Varsóvia de 1929, leva em consideração o contido no art. 178, da Constituição Federal, que diz: “A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendendo o princípio da reciprocidade”.

O principal fator relevante para se discordar da justificativa para aplicar-se a Convenção de Varsóvia em prejuizo do Código de Defesa do Consumidor pode ser apreciado pela lição de Cavalcanti ( ob.cit., 2002, p. 105 - 106) ao esclarecer que, embora atualmente o avião seja um dos meios de transporte mais seguros, o índice de acidentes por decolagem no início e meados do século eram altíssimos se comparados aos índices atuais, e as empresas aéreas, ainda incipientes poderiam ir à ruina em razão de um único acidente, de tal forma que as leis específicas sobre a matéria tomaram por base, segundo Moura (MOURA, Geraldo Bezerra de, “Transporte aéreo e responsabilidade civil”. São Paulo: Aduaneiras, 1992. 1992, p. 227), a natureza especial dos riscos do ar e a preocupação de não prejudicar o desenvolvimento e progresso da aviação comercial, evitando estabelecer um tipo de responsabilidade pesada, em termos de indenização.

Ademais, as leis tinham em conta que os passageiros aéreos, sendo pessoas de condições econômicas privilegiadas, poderiam suportar parte do risco, fato que recomendava a limitação das indenizações, com sacrifício individual, em prol do progresso da sociedade. Assim sendo, pode-se afirmar que a limitação de responsabilidade, antes justificada pelos benefícios que a sociedade poderia colher da nova atividade que se implantava, cumpriu sua função e deve ceder espaço para os atuais anseios da sociedade, visto que atualmente a realidade social é completamente distinta da anterior, na qual as empresas de transporte aéreo de passageiros se tornaram verdadeiras potências e a maioria dos usuários de seus serviços não possuem a mesma condição econômica privilegiada de antes.

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, ao defender a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, fundamenta-se nos seguintes dispositivos da Constituição Federal, ou seja, art. 5º, XXXII, “O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” e art. 170, no sentido de que a “ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: V - defesa do consumidor”.

Relevante ainda que, embora o Supremo Tribunal Federal seja contrário à posição do Superior Tribunal de Justiça, no que concerne ao prevalecimento do Código de Defesa do Consumidor em detrimento da velha Convenção de Varsóvia, a própria Suprema Corte, valeu-se da regra lex posterior derogat priori [conforme o art. 2º, § 1º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro] ( Recurso Extraordinário 80.004 –SE), para a resolução de conflitos entre leis internas e tratados internacionais, manifestando seu entendimento no sentido de que a Convenção, embora tenha aplicabilidade no Direito Interno do Brasil, não se sobrepõe às leis do país.

Logo, defendeu que em caso de conflito entre tratado e lei, prevalece a lei, por representar a última vontade do legislador, embora tenha admitido que o descumprimento no plano internacional possa acarretar conseqüências. É imprescindível esclarecer que, embora se entenda questionável o entendimento no Supremo Tribunal Federal no caso específico do transporte aéreo, admite-se a grande relevância dos tratados internacionais e a necessidade de respeitá-los perante a comunidade mundial.

Por fim, os casos excludentes de responsabilidade do transportador aéreo podem ser resumidos nas seguintes situações: expressa determinação de autoridade, podendo ser autoridade aeronáutica, da Secretaria da Receita Federal do Brasil ou da Polícia Federal; força maior, ou fortuito externo, cujos efeitos sejam imprevisíveis ou inevitáveis; ocorrências políticas como atos de guerra ou conflito armado, lembrando que, como dito anteriormente, embora a legislação interna brasileira (CBAer, CDConsumidor e Código Civil), não revogue os tratados de cunho internacional dos quais o Brasil é signatário, aquela prevalece sobre os tratados, nos pontos em que haja conflito entre as normas legais internas e internacionais.

AUTORIA: Fernando de Oliveira, advogado do escritório Fernando Quércia e Advogados Associados.