Biocombustíveis como bens ambientais: proposta para a paz mundial

Editoria: Vininha F. Carvalho 29/12/2005

Metade da população mundial tem menos de 24 anos de idade. Um bilhão desses jovens precisarão de emprego na próxima década. Para eles, as opções são simples: trabalho e dignidade ou inanição e desespero.Este fato não constitui um problema futuro e sim um desafio que já faz parte do cotidiano da vida no planeta, porque hoje existem 180 milhões de pessoas desempregadas e 550 milhões vivendo com menos de US$ 1 por dia.

Por isso, nos países em desenvolvimento, a questão central que move a vida política é saber se os governos serão capazes de garantir estabilidade política e econômica interna, promovendo crescimento suficiente para criar postos de trabalho digno para centenas de milhões de desempregados e subempregados.

No mundo desenvolvido, embora mais rico, os desafios não são desprezíveis: como a expectativa de vida é 50% maior que a dos habitantes dos países pobres, as despesas com cuidados médicos e programas de Seguro Social para atender maiores contingentes de idosos têm crescido rapidamente.

Ao par destes desafios, tensões de imensa gravidade se avolumam, como a pobreza crescente, má-nutrição infantil, a irrupção de endemias, a propagação da HIV/AIDS, o recrudescimento de doenças conhecidas para as quais já existe tratamento eficaz, como tuberculose e malária; o crescimento assustador (e o conseqüente poder) do dinheiro ilegal advindo do tráfico de drogas e armas, com suas desagregadoras conseqüências sociais e políticas; a exponencial degradação ambiental associada à escassez de água, ausência de saneamento e aumento do efeito estufa.

Estas tensões dificultam a cooperação internacional e acabam solapando a solidariedade e a paz mundial. E é este exatamente o ponto: como promover e incrementar a solidariedade e a paz mundial?



I. Um benéfico fluxo de capitais

O enfrentamento desse quadro preocupante conduz a uma primeira proposta, sustentado pelo pressuposto de que os países ricos têm capital e tecnologia, mas precisam de retornos crescentes para custear gastos também crescentes com as aposentadorias e pensões dos idosos. Os países pobres têm abundantes recursos humanos e naturais, mas precisam de capital e tecnologia. Em resumo, podem-se combinar possibilidades com necessidades: aquilo que parece dividir é o que pode unir.

No entanto, esta aparentemente óbvia combinação não tem funcionado. Ao contrário: são destinados às nações desenvolvidas, que abrigam apenas 20% da força de trabalho do mundo, 60 vezes mais investimentos estrangeiros diretos que os dirigidos às nações em desenvolvimento. Afinal, prevalecem invariavelmente as análises das agências de “avaliação de risco”.

As estatísticas das Nações Unidas (“World Economic Outlook, Balance of Payments Statistics”, 2004) mostram que, a partir de 1998 (portanto somente nos últimos sete anos), as economias dos países em desenvolvimento, carentes de capital, sofreram sangria de recursos, submetidos que foram a uma transferência líquida, destinada aos países ricos, de US$ 1,2 trilhão. A participação dos países de menor desenvolvimento nas exportações mundiais declinou constantemente no período que vai de 1980 a 1990.

O investimento estrangeiro, considerado motor do crescimento econômico, tem preferido a América do Norte, a Europa e o Japão, os quais, juntamente com a China, recebem mais de 90% de todo o investimento estrangeiro direto, enquanto o resto do mundo, com 70% da população mundial recebe menos de 10% dessas inversões de capital (“Global Social Governance – Themes and Prospectives ”, Ministry of Foreign Affairs of Finland, Helsinki, 2003).



II. Comércio justo

Na melhor tradição de Montesquieu, “o comércio é o caminho para a paz entre os povos”, e o comércio justo (“fair trade”) é o caminho mais rápido para alcançar resultados estáveis e duradouros.

Estas novas regras implicariam a substituição do duro, árido jogo das concessões recíprocas milimetricamente disputadas, por uma abertura solidária das fronteiras dos países ricos, para receber, principalmente, produtos agrícolas e agroindustriais dos países em desenvolvimento.

Jeffrey Sachs ressalta que “não basta a ajuda alimentar de emergência às comunidades empobrecidas da África, Oriente Médio e Ásia”. É preciso adotar soluções de longo prazo, para mudar a dura realidade de hoje: “enquanto os países ricos pagam para seus produtores rurais não produzirem, os países em desenvolvimento, ao contrário, precisam produzir para poder pagar suas dívidas, suas importações”, nas palavras do Ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues. E não conseguem, tamanhas são as barreiras alfandegárias, tributárias, fitossanitárias e outras que restringem ou impedem suas exportações para países desenvolvidos.

É a abertura das fronteiras que vai permitir a substituição de esmolas esporádicas por um crescimento agrícola sustentado, com aumento da produção e da produtividade agrícola, arrancando comunidades inteiras da armadilha da fome.

No entanto, isso também não tem efetivamente ocorrido, porque governantes dos países desenvolvidos têm tido enorme dificuldade para fazer concessões contrariando os “lobbies” dos seus produtores.

Difícil, portanto, acreditar que países desenvolvidos (principalmente a U.E. e os EE.UU.) venham a abrir mão de parte de suas exigências de reciprocidade, desatendendo parte dos interesses dos setores econômicos domésticos, para adotar medidas que possam beneficiar países em desenvolvimento.

Mesmo assim, não se pode deixar de cobrar que os ricos assumam a “responsabilidade moral” de abolir barreiras alfandegárias e pôr fim a subsídios agrícolas, para aliviar a pobreza nos países mais miseráveis.

Afinal, um dos grandes desafios da Organização Mundial do Comércio (OMC) é conseguir concluir as negociações da Rodada de Doha com um acordo que estabeleça prazos para cortes (e para o fim) de subsídios agrícolas. Neste caso, mesmo que se obtenham maiores concessões por parte do mundo desenvolvido, já se ouvem alertas para os custos que poderão advir das medidas que países em desenvolvimentos serão obrigados a adotar como contrapartida. Kevin P. Gallagher, na Folha de S. Paulo, ressalta: “Paralelamente aos benefícios da abertura de mercado em torno de US$ 16 bilhões, previstos para os países em desenvolvimento, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) prevê que as perdas nas rendas advindas de tarifas que deixarão de ser impostas pelos países em desenvolvimento, propostas no contexto das atuais negociações do Nama (da sigla inglesa para Acesso a Mercado Não-Agrícola), oscilarão entre US$ 32 e US$ 63 bilhões anualmente, ou seja, as perdas poderão ser duas e quatro vezes os US$ 16 bilhões dos benefícios. Para o Brasil, as perdas projetadas pela tarifa Nama podem chegar à cifra de US$ 3,1 bilhões, quase a totalidade do benefício esperado para o Brasil nesta rodada de conversações da OMC.


III. Biocombustíveis

Resta uma terceira oportunidade: países em desenvolvimento exportarem para os desenvolvidos produtos de que estes prioritariamente necessitem e que não estejam conseguindo produzir na quantidade demandada. É o caso dos biocombustíveis.

Esta oportunidade surge, nos dias atuais, com as previsões cada vez mais consensuais de que o petróleo está com os dias contados. Até recentemente, a sociedade acreditava serem inesgotáveis as reservas de petróleo e gás natural. As empresas do setor e governos, por interesses financeiros e políticos, mantinham cerrada campanha publicitária de desinformação, apesar dos alertas de economistas e especialistas independentes.

Hoje, no entanto, observa-se uma reversão nos dados divulgados pelas empresas de petróleo: as informações coincidem, mostrando que as reservas estão entre 1,05 e 1,25 trilhão de barris. Como o consumo mundial é de 30 milhões de barris por ano, só há petróleo para menos de 40 anos.

O fato incontestável é que, na medida em que vai se tornando mais escasso, o preço do petróleo vai subindo a ponto de viabilizar energias alternativas, hoje antieconômicas. Por isso, estima-se que o petróleo deva ir sendo destinado a fins mais nobres, como é o caso da petroquímica, deixando que uma parte da energia que dá mobilidade, que move veículos, seja produzida a partir da biomassa.

Além disso, cresce a consciência de que os problemas de aquecimento global advindos do “efeito estufa” devam ser enfrentados, restringindo-se emissões de CO2, através da substituição das “energias sujas” por limpas, renováveis.

Por tudo isso, surge uma excepcional oportunidade: a produção e o comércio internacional dos biocombustíveis, contra o qual não existem ainda fortes “lobbies” internos de produtores domésticos.

Hoje, o comércio internacional de biocombustiveis é muito pequeno, cerca de apenas 2% do mercado global. No entanto, para possibilitar uma mistura de 10% à gasolina, que permita substituir o aditivo éter-metil-tércio-butílico (MTBE) ou o chumbo - tetraetila, a produção mundial necessária de etanol é de 2 bilhões de barris ou 320 bilhões de litros por ano (20 vezes a produção brasileira), o que implica a necessidade de incorporar de uma imensa extensão de áreas agricultáveis.


IV. Bens ambientais

Para que a produção e comercialização de biocombustíveis possam ocorrer em larga escala, é conveniente instituir regras que facilitem e estimulem o seu comércio internacional.

De acordo com a Declaração de Doha (2001), a fim de contribuir com a promoção do desenvolvimento sustentado, bens e serviços ambientais devem ser liberalizados, conforme como prescrevem os parágrafos 6 e 31 (iii) da Declaração (redução ou eliminação de barreiras tarifárias e não tarifárias sobre bens e serviços ambientais).

A tarefa de definir “bens ambientais” não é simples. Não há presentemente definição para os bens ou serviços ambientais em foros internacionais. Tampouco existe uma “categoria de bens ambientais” no sistema harmonizado de classificação de mercadorias. Por isso, a definição a ser elaborada pela CTESS (“WTO Committee on Trade and Environment meeting in Special Session”) será inédita e pode dar-se a partir da adoção de uma lista pré-existente, a partir da qual se negocia o equilíbrio de interesses de todos os membros da Organização Mundial do Comércio. Nessa direção, em julho de 2003, os Estados Unidos propuseram a elaboração de uma lista principal e de uma lista complementar. A lista principal deve conter os produtos considerados por todos os países como “bens ambientais”. A lista complementar será formada por produtos em relação aos quais haja relativo ou parcial consenso.

A previsão inicial é que os bens ambientais constantes da lista principal e uma parcela dos itens da lista complementar deverão ter suas barreiras tarifárias e não-tarifárias eliminadas até 2010. Países em desenvolvimento deverão receber tratamento especial e diferenciado.

Os mais recentes avanços obtidos (julho/2005) pelas partes negociadoras indicam que as listas propostas para os “bens ambientais” consideram quatro categorias: gestão de emissões poluentes; produtos e tecnologias limpas; gestão de recursos ambientais; e outros, compreendendo produtos ambientalmente preferenciais em função das condições para descarte, da contribuição para a conservação do solo e da utilização ou possibilidade de reciclagem dos rejeitos e resíduos. Estes tópicos voltam a ficar na pauta durante a reunião de Hong Kong, em dezembro de 2005.


V. Frente Parlamentar pelos Biocombustíveis

Como se vê, não é possível um país, sozinho, incluir os biocombustíveis nesta lista principal de bens ambientais, já que por definição só devem constar dela os produtos que gozem de consenso internacional.

Por isso, um dos caminhos é tentar aglutinar parlamentares de diversos países para formar uma Frente Mundial Pró-Biocombustíveis, que defenda a inclusão dos mesmos como bens ambientais e promova a sua utilização como aditivos à gasolina ou ao diesel mineral.


VI. Vantagens dos biocombustíveis

Os biocombustíveis apresentam diversas vantagens em relação aos combustíveis fósseis, sendo a primeira delas de natureza macroeconômica: cada barril de biodiesel ou de etanol produzido corresponde a um barril de combustível fóssil que deixa de ser importado, ou deixa de ser consumido, melhorando o resultado da balança comercial.

A segunda vantagem é de natureza ambiental, pois os biocombustíveis ajudam a reduzir as emissões de CO2, contribuindo para minorar o efeito estufa ou até atuando sobre o mesmo, na medida em que aumenta a fixação de CO2 em razão da biomassa.

Terceiro o etanol, como aditivo a gasolina, dispensa a adição do chumbo-tetraetila, substância altamente cancerígena.

Quarto, permite à produção de bioeletricidade, pois o resíduo da produção do biodiesel ou do etanol, como já ocorre com o bagaço da cana, podem ser queimados para gerar energia elétrica.

O quinto benefício é estratégico, geopolítico: diminuir a dependência do petróleo produzido em regiões convulsionadas por constantes tensões políticas.

O sexto benefício, sem dúvida o mais relevante de todos é o social: criar empregos. Além do mais, a criação de empregos no mundo emergente pode estar correlacionada com a segurança no mundo desenvolvido. Basta observar o terrorismo que domina o noticiário: terroristas, em boa parte, são recrutados em locais onde uma crescente população jovem vê a esperança com sarcasmo, e não como efetiva crença em uma vida melhor. E a maioria deles, independentemente de seus objetivos políticos ou militares, ataca os ricos, aqueles que lhes negam oportunidades. Por isso, para enfrentar o terrorismo e procurar oferecer segurança para as futuras gerações, precisamos compreender e superar as tensões alimentadas pela absoluta falta de perspectivas dos pobres frustrados do mundo subdesenvolvido, o que alimenta o fanatismo e o fundamentalismo suicida.


VII. Oportunidade para os países mais pobres

Os países em desenvolvimento, situados em regiões tropicais ou subtropicais, têm alto índice de fotoperiodismo (chegando a 16 horas de sol/dia), água suficiente e abundante mão de obra. Dispõem de quase 200 milhões de hectares de terras agricultáveis ainda não exploradas, áreas que podem permitir a expansão de lavouras de matéria-prima para produzir biocombustíveis.

Os processos produtivos de etanol e biodiesel, por exemplo, têm tecnologias industriais conhecidas. Por outro lado, pode tornar-se, particularmente para o Brasil, motivo oportunidade de oferecer a tecnologia agrícola tropical que domina, para ser adaptada por países africanos e asiáticos que dispõem de condições climáticas semelhantes, fortalecendo políticas de cooperação bilateral e multilateral.

Está na hora de o mundo se tornar mais solidário. É imperioso mudar esse quadro de tão brutais desigualdades, o que só conseguiremos com estratégias que ataquem as causas da pobreza e da fome.



Antonio Carlos de Mendes Thame é deputado federal pelo PSDB-SP e está em seu quarto mandato. É engenheiro agrônomo pela USP e Mestre em Economia Rural. Foi prefeito da cidade de Piracicaba de 1993 a 1996; Secretário de Recursos Hídricos, Saneamento e Obras do Estado do Estado de São Paulo nos governos de Mário Covas e Geraldo Alckmin e o primeiro presidente do Comitê de Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí.

Fonte: AG Ambiental