Deixem em paz os rios e córregos canalizados

Editoria: Vininha F. Carvalho 29/11/2005

No intuito de evitar a construção de novos "piscinões" em São Paulo, o Secretário Municipal do Verde e do Meio Ambiente, Dr. Eduardo Jorge, anunciou que quer trazer à tona rios e córregos soterrados por avenidas. Segundo ele, a medida, que busca "re-naturalizar" os rios paulistanos, criaria áreas de absorção de água da chuva, o que ajudaria a evitar enchentes. E deu a seguinte declaração aos jornalistas: "Queremos modificar a cultura da população e de engenheiros. As obras para renaturalizar os rios são mais baratas que as canalizações".

Para dar cunho prático ao discurso, o secretário informou que na Avenida 23 de Maio, onde antes fluía o Córrego Itororó, a intenção é refazer o leito no canteiro central, que, com isso, passaria a ser rodeado por uma área verde.

À primeira vista, a proposta cai como um oásis nas mentes e corações dos mais ingênuos naturebas paulistanos, mas, é claro, não passa de pura miragem.

Nada contra a pessoa do digníssimo secretário, mas a "re-naturalização" dos rios de uma cidade como São Paulo é um atentado à lógica urbana, pois fere o mínimo bom senso, assalta o bolso do contribuinte e pode criar um problema de saúde pública sem precedentes.

As conseqüências da "nova proposta" vão muito além disso, mas esse breve quadro é suficiente para alertar o cidadão sobre os aspectos nefastos e temerários da medida, a qual, venhamos e convenhamos, jamais deveria partir de um órgão público, sem consulta aos demais envolvidos na mesma Prefeitura, pois não contempla o interesse da sociedade e só tende a tornar ainda mais difícil a vida nessa nossa paulicéia desvairada.

Só na teoria a cidade de São Paulo tem "rios" e "córregos" canalizados. Na prática, o que hoje "corre" pelas tubulações, debaixo de nossas avenidas, é um lodo fedorento e nesse espaço subterrâneo vive uma população que o cidadão quer ter bem longe da porta de casa: milhões de roedores, muitos deles com compleição física bastante avantajada, bilhões de insetos e quinquilhões de vírus e bactérias.

É fácil constatar, com esses poucos elementos, a ingenuidade sem limites da proposta do secretário municipal.

Sem antes tratar 100% do esgoto despejado nos cursos canalizados, o que teremos como resultado da "re-naturalização" será um mar de sujeira correndo a céu aberto, expondo a população à leptospirose, doença transmitida pela urina do rato, entre outros males.

Outra conseqüência no mínimo desastrosa: em uma cidade que não tem mais espaço para crescer, córregos voltando à tona "renaturalizados" terão, por força do Código Florestal, que abrigar em seu entorno a chamada Área de Preservação Permanente (APP), uma faixa de terra de aproximadamente 30 metros em cada margem, o que vai ocasionar o recuo de avenidas e construções, limitações ao direito de propriedade nas áreas "re-afetadas", rios de desapropriações e custos adicionais com novas obras.

Nada mais ilógico, mas o contribuinte paulistano é quem vai arcar com os custos dessas desapropriações e também com a posterior manutenção dessas APP’s. Os novos loteamentos também terão de prever essas áreas verdes no caso de existirem córregos "re-naturalizados" nos limites do projeto, mais um custo a ser repassado para os futuros compradores.

Se há uma justificativa para a proposta de "re-naturalização" dos cursos d’água, não só na cidade de São Paulo mas em qualquer outra localidade do país, é fazer o trabalho bem feito de cabo a rabo. E isso significa identificar a nascente do rio ou córrego e a partir dela, sim, de forma honesta e tecnicamente correta, trazer todo o curso para as vistas do povo. Se no meio desse caminho além de pedras houver muita sujeira, a canalização será a medida, não ideal, mas a única possível.

Não podemos ser ingênuos ou hipócritas a ponto de passar por cima de um fato que determina essa escolha: as ligações de esgoto das nossas cidades, em grande parte, são clandestinas e o caos urbano que herdamos sequer cogitou a preservação dos cursos d’água já canalizados.

É possível, sim, redefinir a ordem urbana para que alcance a sustentabilidade, mas isso não deve incluir maquiagem verde em natureza morta...

O país parece tomado, em todos os cantos, pelo espírito do F-E-B-E-A-PÁ "stanislawvskiano". Se há "sujeira" em nosso piscinões e obras públicas, que venha à tona e às vistas do povo paulistano, para ser devidadamente eliminada... Mas, por favor, deixem em paz nossos rios e córregos canalizados...



*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado e consultor ambiental. Criou a Comissão de Meio Ambiente da OAB-SP, presidiu a Associação Brasileira dos Advogados Ambientalistas e foi secretário do Verde e do Meio Ambiente do município de São Paulo. É sócio-diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados.

Fonte: AG Comunicação Ambiental