Água: Ecosistema ou Mercadoria?

Editoria: Vininha F. Carvalho 11/07/2005

Os fundadores dos pensamentos liberal e socialista consideravam a água e o ar como bens inesgotáveis, portanto não sujeitos a se tornarem mercadorias. Não havia ainda a concepção de ecossistemas aquáticos. Por uma ótica reducionista, estes bens foram passando de abundantes a escassos e finitos.

Assim, se água bruta continuou sendo vista como um recurso inesgotável e não mercantilizável, a água tratada por empresas públicas e privadas tornou-se uma mercadoria. Passou-se a argumentar que o fornecedor de água deve cobrar por ela pelos custos de captação, tratamento e distribuição, ao lado de sua coleta por redes de esgoto após o seu uso. Água tratada virou mercadoria e coleta de esgoto virou serviço.

Paralelamente, com o desenvolvimento da ecologia enquanto ciência, já a partir do século XIX, a água não foi encarada como um elemento isolado, mas como integrante fundamental dos ecossistemas. Ela está presente nos oceanos, nos rios, nos lagos e nos lençóis subterrâneos.

Ela predomina em alguns ecossistemas, como nos oceânicos, nos fluviais e nos lagunares. Ela não pode ser dissociada de minerais sólidos, da atmosfera, da flora, da fauna e de outros organismos vivos. Ela está presente inclusive no corpo humano em proporções semelhantes às do planeta Terra.

Economia e ciência seguiram rumos diversos com relação à água. No Brasil, a legislação nunca a tratou como parte fundamental de ecossistemas. O Decreto Federal nº 24.643, de 10 de julho de 1934, instituindo o Código de Águas, seguiu a tradição portuguesa de reservar áreas de servidão pública junto a rios e lagoas, mas valorizou nas águas seu caráter de meio de transporte e seu potencial gerador de energia elétrica.

Mais recentemente, a Lei Federal nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, criando a Política Nacional de Recursos Hídricos, atribuiu grande ênfase à água como mercadoria, divorciando-a de fatores com os quais ela constitui ecossistemas. Esta lei expressa a preocupação mundial com a escassez progressiva da água como bem de consumo, mas descura o caráter fundamental das águas continentais como integrantes de ecossistemas.

Fala em bacia hídrica como unidade de planejamento e em gestão de recursos hídricos através de um Conselho Nacional, de Comitês e de Agências, mas é omissa quanto à proteção dos ecossistemas aquáticos continentais.

Aliás, a expressão ecossistema não aparece no texto da lei. Em vez de se avançar para o conceito de limnossistema (ecossistema aquático continental), regride-se para os conceitos de recurso, de bem e de mercadoria. Por este prisma, ela não avança em relação ao Código de Águas.

De fato, a situação dos limnossistemas no Brasil e no mundo é extremamente preocupante. Da água doce disponível no mundo, o Brasil detém 8%. Todavia, cumpre lembrar que uma parte incalculável dela foi jogada ao mar com a drenagem parcial e total de lagos e com a retificação de rios.

A parcela que restou vem sendo poluída por esgotos domésticos, efluentes industrias e metais pesados, entre tantos outros contaminantes. A biodiversidade dos limnossistemas está sendo empobrecida por drásticas ações antrópicas.

Diante deste quadro, não basta apenas considerar a água como mercadoria e cobrar por ela. É preciso restaurar e revitalizar os limnossistemas, aproximando legislação, políticas públicas e educação mais da ecologia que da economia. A cobrança pela água em si só tem cabimento se visar o renascimento dos ecossistemas aquáticos continentais.



Autoria: Arthur Soffiati- Historiador e escritor com vários livros publicados, especialista em História Moderna e Contemporânea pela Universidade Católica de MG, Mestrado em História Ambiental pelo Instituto de Filosofia e Ciência Humanas da UFRJ, Doutorando em História Ambiental pelo IFCS/UFRJ e Professor da Universidade Federal Fluminense