Uma Rosa Nem Sempre É Uma Rosa

Editoria: Vininha F. Carvalho 14/07/2005

Saudável sentir saudades? Todos sentem. De alguma coisa ou de alguém. Mas, de algo que nunca existiu, também seria? Sinto essa saudade-fantasma, no declive da vida, enquanto caminho deixando para trás rastros que nunca houve, pois uma chuva de nada destruía as pegadas. E choro todas as noites. Cada lágrima é um pingente oco de passado. As paixões que não tive, me fazem sofrer tanto quanto se as houvesse tido e todas me tivessem traído.

Não sou homem nem animal. Não sei o que sou. Todo animal experimenta (ou experimentou), algum tipo de prazer. Embora sem sentimento algum. Todo homem sentiu paixões. Podem ter sido passageiras: isso não invalida o deleite. Do mesmo modo, como uma vida inútil, ao se findar, não pode ser comparada com outra plena de realizações. Então, o que sinto não são exatamente saudades. É uma frustração imensa por não ter do que senti-las.

Nunca o escutei pronunciando essas palavras. Contudo, sei que as dizia. Assim como não ouvi a voz do homem branco ao pisar, pela primeira vez, o solo da minha terra, porém sei o que disse: “um grande salto para a humanidade”.

Embora ignore a que espécie de humanidade ele se referia. Era um desses velhos sem idade. Jamais conheceu a mocidade. Amadureceu ainda criança, à força de alguma insubstância inoculada na alma por algum antideus. O sol a pino desceu-lhe sobre a infância num crepúsculo de meio-dia.

No entanto, sou um artista. Desaprendi a ser amado, mas me aprenderam a amar a Arte. Queria pintar um sonho. Algo que representasse o objeto-objetivo inalcançável: uma mulher. Eu desejava essa mulher, assim como um condenado no Inferno de Dante, ansiava por uma gota de orvalho.

A chuva preta caía pesada sobre o leito, e não dormia. Ajuntava-se com outras águas escuras vindas da cabeceira e transbordava muito além das margens, destruindo e carregando tudo. Para quem habitava nas imediações, o sertão virava um mar negro. Para quem vivia em locais um pouco mais afastados, não era muito diferente: o sertão não virava negro mar, porém as casas viravam ilhas carbonizadas.

Pessoas sucumbiam afogadas. Algumas pela inundação repentina. Outras simplesmente desapareciam. Os “ilhéus” também morriam, no afã de acumular víveres e transportar para as suas moradas. Todos traziam os corpos total ou parcialmente desnudos de roupas e de pele. O velho sobreviveu. Dizem ter sido, de fato, um grande artista. Afirmam ter pintado várias telas de alta qualidade. Vi somente uma. Sequer conheço o nome. Porém, logo que meus olhos a fitaram, experimentei um calafrio. Representava homens enlouquecidos. Pareciam aterrorizados. Puxavam os cabelos e gritavam como se estivessem sozinhos no mundo e acabassem de pressentir uma hecatombe. O quadro era a personificação do desespero em forma de arte.

Durante a grande inundação, caminhava junto com dois amigos, pelos arredores da casa, sob os alpendres. Subitamente, o céu se tingiu todo de vermelho vivo. Manchas de sangue toldavam o horizonte e chamas gigantescas prestes a desabar como uma tempestade de fogo, revestiam o zimbório. Fantasmas descarnados perambulavam sobre uma crosta escura onde antes existiam as águas da inundação. Estaquei, sentindo-me exausto, e me recostei a uma parede. Meus amigos continuaram a caminhar e eu permaneci trêmulo e pleno de angústias. Então escutei um estrondo como se o ribombar de mil trovões perpassasse inteiro através da natureza.

De certo modo, pintou a sua tela. O ideal para o qual viveu e morreu. É possível sobreviver sem paixões, mas é impensável subsistir sem ideal. E o velho pintor tinha o seu. Reproduzir, através da arte, um símbolo do objeto do seu desejo. Não atingiu a perfeição de pintar a rosa tão almejada.

A flor cuja única felicidade consiste em doar tudo o que possui de mais precioso: a beleza, a cor, o perfume. Uma flor que, tal qual uma mulher, se abre em plenitude para abrigar a humanidade. No ventre, no colo, no seio, no íntimo das suas mornas e aveludadas entranhas. Essa flor ele jamais conseguiu esboçar. Mas, não morreu antes de pintar outro tipo de rosa: A Rosa De Hiroxima.



Autoria:Raymundo Silveira- médico e escritor. Tem trabalhos publicados em várias revistas e livros de medicina.

Fonte: Raymundo Silveira